MENSAGENS EDUCATIVAS POSITIVAS
TEMA: CARTA DE PERO
VAZ DE CAMINHA
O 1º documento sobre o Brasil A carta que o escrivão Pero Vaz de Caminha
escreveu ao rei d. Manuel é considerada o primeiro documento da nossa história,
e também como o primeiro texto literário do Brasil. Desaparecida
durante muitos anos, a carta de Caminha só foi redescoberta e publicada em 1817,
pelo historiador português Manuel Aires do Casal Esta crônica do nascimento do Brasil, redigida
em forma de diário, vem motivando um volumoso número de estudos e edições, desde
quando o padre Manuel Aires de Casal a publicou pela primeira vez na Corografia
brazílica. O original desse precioso documento, em sete folhas de papel
manuscritas, cada uma em quatro páginas, num total de 27 páginas de texto e mais
uma de endereço, encontra-se guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em
Lisboa, (gaveta 8, maço 2, n.2). A carta de Caminha caracteriza-se pela
descrição da tipicidade humana do indígena. Observou Carlos Malheiro Dias que
"Caminha não era um cosmografo. O que ele redigiu para recreio e esclarecimento
do rei foi uma narrativa impressionista em que revela aquela cultura literária
tão própria dos portugueses da sua grande época, e aquela capacidade de
observação, e aquela capacidade de compreender e descrever judiciosamente, que
constituem o mais esplêndido encanto dos cronistas". A preocupação em traduzir
gestos, a caracterização corporal, a sua alimentação e abrigo, enfim, o seu modo
de existir, demonstra o valor dessa carta narrativa como documento e obra
literária. Referências: . Corografia brazílica, ou relação histórico-geográfica
do reino do Brazil. Composta e dedicada a sua Magestade Fidelíssima pelo
presbítero Manuel Aires de Casal. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, volume
1, pág. 12-34. . Cortesão, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha. 3 ed., Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994, p. 191. . Seguro, Visconde de Porto
(Francisco Adolfo de Varnhagen). Nota acerca de como não foi na Coroa Vermelha,
na enseada de Santa Cruz, que Cabral primeiro desembarcou e em que fez dizer a
primeira missa. In: Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geográfico e
Etnográfico do Brasil. Rio de Janeiro: Garnier, 1877. Vol. XL, Parte 2, p.12. .
Abreu, João Capistrano de. O descobrimento do Brasil. Nota liminar de José
Honório Rodrigues. 2 ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL,
1976, p.167. . Dias, Carlos Malheiro. A semana de Vera Cruz. In: História da
colonização portuguesa do Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1923. Vol. 2, p.
77. . Pereira, Paulo Roberto. Os três únicos testemunhos do descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. O texto da carta, assim como a
nota informativa e as referências, basearam-se no livro - Os três únicos
testemunhos do descobrimento do Brasil, de Paulo Roberto Pereira. Rio de
Janeiro: Lacerda Editores, 1999. Carta de
Caminha:
Senhor, Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e
assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa
terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso
minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem
contar e falar -- o saiba pior que todos fazer. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por
boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei
aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singraduras do caminho não
darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem
ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi
segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas,
nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo
aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22
do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo
Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar,
piloto. Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer,
se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem
contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar,
a uma e outra parte, mas não apareceu mais! E assim seguimos nosso caminho, por este mar,
de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de
abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos
diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas
compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome
de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam
fura-buxos. Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista
de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras
mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o
capitão pôs nome - o Monte Pascoal e à terra - a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco
braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em
dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à
quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimosem direitos à terra, indo os
navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze,
dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em
frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais
ou menos. Dali avistamos homens que andavam pela praia,
obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem
primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes, e
vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram
entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver
aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens,
quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do
rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que
lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham
todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os
arcos. E eles os pousaram. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento
de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e
uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles
deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas
vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de
continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio
que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e
não poder haver deles mais fala, por causa do mar. Na noite seguinte, ventou tanto sueste com
chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela
manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o
Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis
e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma
abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que
nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos. Quando fizemos vela, estariam já na praia
assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado
ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que
seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que
amainassem. E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas
do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um
recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada.
E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes
do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze
braças. E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um
daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro
para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois
daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia.
Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus
arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao
Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos, maneira de
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma
cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta
inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e
metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão
travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador.
Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e
os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os
molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos seus são corredios. E andavam
tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados
até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a
fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria
do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e
as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda
como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui
basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Capitão, quando eles vieram, estava sentado
em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos
pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho,
Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão,
pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia,
nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do
Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como
que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e
assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também
houvesse prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão
traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que
os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma
galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram
como que espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido,
confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo;
e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes vinho numa
taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que
lavaram, e logo a lançaram fora. Viu um deles umas contas de rosário, brancas;
acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois
tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e
para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o
desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto
não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as
contas a quem lhas dera. Então estiraram-se de costas na alcatifa, a
dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram
fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes
mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por
não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram,
quedaram-se e dormiram. Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer
vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete
braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças -
ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela
mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os
capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau
Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os
deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua
camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que
eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles,
para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso
Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou
que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali
acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos.
Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos;
e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo
saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não
pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria.
E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava
pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre
umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o
degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá.
Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais
vinham já nus e sem carapuças. Então se começaram de chegar muitos. Entravam
pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de
água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e
traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas
junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem
alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um
cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos
queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças
de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar. Dali se partiram os outros dois mancebos, que
os não vimos mais. Muitos deles ou quase a maior parte dos que
andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem
eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam
espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e
os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade
deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e
outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem
moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as
muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então não houve mais fala ou
entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem
ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e
passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e
encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus.
Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles
mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma
bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o
lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas
então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E
ele tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo
voltou e nós trouxemo-lo. Esse que o agasalhou era já de idade, e andava
por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado
como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de
vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a
cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha
(que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra,
vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum
deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles
foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os
outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia.
Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém
nela estar. Somente saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía
está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de
água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou
ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali
andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às
naus, já bem de noite. Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o
Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães
que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou
naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E
ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei
Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e
sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida
por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com
que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a
uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e
proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa
vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja
obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção. Enquanto
estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou
menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E
olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à
pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a
saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três
que aí tinham -- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três
traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam
não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos
nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em
direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na
dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de
uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de
pedra, atrás dele. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias,
chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos
deles os iam logo pôr em terra; e outros não. Andava aí um que falava muito aos outros que se
afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo.
Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de
tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas
os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era
assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água,
parecia mais vermelha. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e
andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe
davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão;
e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais
opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação,
a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto.
Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns
camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como
em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas
não toparam com nenhuma peça inteira. E tanto que comemos, vieram logo todos os
capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu
na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento
desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar
descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa
viagem. E entre muitas falas que no caso se fizeram,
foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E
tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui
por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por
eles outros dois destes degredados. Sobre isto acordaram que não era necessário
tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força
para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor
e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui
deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende.
Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito
melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que, portanto,
não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de
todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados,
quando daqui partíssemos. E assim, por melhor a todos parecer, ficou
determinado. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e
ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados e a
bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos;
e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos,
e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra,
passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de
mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se
entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de
maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas
por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos, e andavam
assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns
iam-se para cima onde outros estavam. Então o Capitão fez que dois homens o tomassem
ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria
mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele
alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não
entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já
para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas
daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os
nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas. Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo
acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e
vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam
bem assim. Também andavam, entre eles, quatro ou cinco
mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com
uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta;
e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas
assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta
inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha. Também andava aí outra mulher moça com um
menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo
que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não
traziam pano algum. Depois andou o Capitão para cima ao longo do
rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão
uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos,
sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas coisas que lhe demandávamos
acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia. Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe
caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim,
que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que
diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos
sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos
nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa,
mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras
coisas, a mandar a Vossa Alteza. Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de
muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que
há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo para a
boca do rio, onde havíamos desembarcado. Além do rio, andavam muitos deles dançando e
folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem.
Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é
homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E
meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e
andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali,
andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam
e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou,
tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima. E então o Capitão passou o rio com todos nós
outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra.
Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda
aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou
oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram
dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia. Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que
eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como
pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem
mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar. O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma
carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça
que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo
recatando e não quis mais tornar de lá para aquém. Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a
que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro ser gente
bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam
muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como
aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às
mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não
pode mais ser. Isto me faz presumir que não têm casas nem
moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até
agora vimos nenhuma casa ou maneira delas. Mandou o Capitão aquele degredado Afonso
Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas
à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E
deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes - disse
ele - que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e
ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a
dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas
choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho.
E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir. À segunda-feira, depois de comer, saímos todos
em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras
vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós;
e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns
deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por
alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou,
que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos
estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas
de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar
amostra a Vossa Alteza. E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam
com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos
quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados;
outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com
os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores,
que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram
cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam
tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam,
tanto mais vermelhos ficavam. Todos andam rapados até cima das orelhas; e
assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte,
tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos. E o Capitão mandou aquele degredado Afonso
Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a
Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que
ficassem lá esta noite. Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles
diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez
casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de
madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas
duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de
esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para
se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma
num cabo, e outra no outro. Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou
quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela
vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra
há e eles comem. Mas, quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos e não
quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e por outras
coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e
formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de
penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza
todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele
disse. E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus. À terça-feira, depois de comer, fomos em terra
dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de
sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para
nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos
sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a
acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito
prazer. Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois
carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou. Muitos deles vinham ali estar com os
carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que
a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja,
e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau
entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo
diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta, que
quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo
Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda
a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se
foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha,
atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos,
grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra.
Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos,
somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de
Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos
são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão
haja muitas aves! Cerca da noite nos volvemos para as naus com
nossa lenha. Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui
a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos,
as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa
Alteza verá por alguns que - eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar. À quarta-feira não fomos em terra, porque o
Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às
naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das
naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos
quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já
de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e
outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os
rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau,
queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e
homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a
vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse.
Dormiram e folgaram aquela noite. E assim não houve mais este dia que para
escrever seja. À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos
logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o
Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele
ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos
hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram
mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz. Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer
que o não bebiam bem. Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e
eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem
revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria
segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço
detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha
tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em
terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez
deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à
praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta. Traziam alguns deles arcos e setas, que todos
trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do
que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas
parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade. Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e
galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta
podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e
seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles. Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por
este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era
esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água. Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao
longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas
prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que
colhemos muitos e bons palmitos. Quando saímos do batel, disse o Capitão que
seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o
rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de
joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim
fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e
foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se homem
os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece,
não têm, nem entendem em nenhuma crença. E portanto, se os degredados, que aqui hão de
ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a
santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa
fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e
de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes
quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como
a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja
acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus
que com pouco trabalho seja assim. Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi,
nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que
costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há
muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com
isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto
trigo e legumes comemos. Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e
bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que
são muito mais nossos amigos que nós seus. Se lhes homem acenava se queriam vir às naus,
faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera
convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou
cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por
pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem. Um dos que o Capitão trouxe era um dos
hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio
hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui
bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os
mais amansar. E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de
maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima
do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para
melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a
chantar. Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós
outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com
esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou
oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para
nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar,
que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem
cento e cinqüenta ou mais. Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de
Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali
disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já
ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles,
assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos
todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as
mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E
quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim
todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados,
que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até acabada a comunhão,
depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns
de nós outros. Alguns deles, por o sol ser grande, quando
estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles,
homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que
ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda
chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para
o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa
de bem; e nós assim o tomamos. Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de
cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos
pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da
pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a
devoção. Esses, que à pregação sempre estiveram,
quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que
viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como
Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe
ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua
ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um
por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e
alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra
de quarenta ou cinqüenta. Isto acabado - era já bem uma hora depois do
meio-dia - viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que
fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com
ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa
destoutras. E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta
gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos,
porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos
pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se
Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão
tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo
de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa
fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje
também comungaram. Entre todos estes que hoje vieram, não veio
mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano
com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia
grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência
desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência
vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação. Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a
Cruz, despedimo-nos e viemos comer. Creio, Senhor, que com estes dois degredados
ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos
para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã,
prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida. Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que
mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós
deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e
cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes
barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito
cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e
muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito
grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos,
que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja
ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a
terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre
Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é
graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que
tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer,
me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que
Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta
pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para
se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa santa fé. E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa
Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me
perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que, assim neste
cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa
Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular
mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que d'Ela
receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz,
hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. Pero Vaz de Caminha |