MENSAGENS EDUCATIVAS POSITIVAS
TEMA: 1932 VISTO POR UM MENINO DE 10 ANOS |
Em 2002 a Revolução Constitucionalista de 1932 comemorou 70 anos. Em Lorena, SP, foi promovido um Encontro Cultural sobre 1932, na Casa da Cultura da cidade, no dia 04/julho/2002. Nesse Encontro fui convidado a falar um pouco sobre 1932, e falei sobre os ideais dos paulistas por um Brasil melhor, ideais que aprendi, muitos anos depois (nasci em 1944) com meu pai que nela lutou como padioleiro, socorrendo feridos numa das frentes de combates. Outro convidado, o Prof. José Geraldo Evangelista, leu seu depoimento sobre como ele, com 10 anos de idade (quase 11) na época da Revolução, viu os acontecimentos nesta cidade de Lorena, cidade localizada no Vale do Paraíba, a meio caminho entre as cidades de São Paulo e o Rio de Janeiro, na época a capital federal. Lorena foi importante, estrategicamente em 1932, pois foi a sede do comando revolucionário da Frente Norte de Combates e entre ela e a próxima cidade, Guaratinguetá, ficavam as últimas trincheiras da revolução, em Engenheiro Neiva. O depoimento do Prof. Evangelista é muito interessante, como fato histórico, já que apresenta aspectos que a História e os livros sobre a Revolução de 1932 não registraram. Com a autorização do autor, que tinha 80 anos quando de seu depoimento em 2002 (faleceu em 02/07/2003), apresento o seu depoimento. O Prof. José Geraldo Evangelista, era geógrafo e historiador, membro da Academia Paulista de História, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do IEV - Instituto de Estudos Valeparaibanos e sócio fundador da Sociedade dos Amigos da Cultura de Lorena. Que o depoimento do Prof. José Geraldo Evangelista, que irá ler possa contribuir para que compreenda mais um pouco dos fatos históricos de 1932. Desejando mais informações, poderá ler os outros artigos sobre 1932 existentes neste site. No ideal de um Brasil melhor (um dos ideais dos paulistas em 1932), e no ideal de um mundo humano melhor, Antonio de Andrade Contato pelo e-mail opcao@editora-opcao.com.br |
"A Revolução
Constitucionalista em Lorena"
(Geraldo Evangelista *)
"O
que vou ler para este seleto auditório é o depoimento de um menino de pouco
mais de 10 anos, que viveu em Lorena no período da Revolução
Constitucionalista de 1932. Surpreendentemente, em termos de hoje, o moleque
lia todos os jornais diários e sabia o que estava acontecendo na política
nacional, estadual e até municipal, repudiando a ditadura de Getulio Vargas e
os Interventores Federais, que feriam o brio dos paulistas.
É
preciso, porém, deixar bem claro que as ideias que vou expor são as do
moleque, não as do adulto e não devem indicar qualquer ódio ou desapreço
aos nossos irmãos que não nasceram em terras paulistas.
Depois do
23 de Maio e do aparecimento da sigla M.M.D.C., o 9 de Julho, quando São
Paulo se revoltou, surgiu quase naturalmente, largamente justificado pelas
transmissões do rádio, com os discursos, as marchas militares e o
noticiário inflamado ouvido a toda hora. Foi, sem dúvida, o nascimento da
mídia nacional, empolgando as multidões e levando-a à luta armada contra o
poder central.
Em Lorena,
a população aderiu maciçamente e os poucos contrários não tinham coragem
de manifestar-se abertamente. Das marchas militares, a "Paris Belfort"
era a mais tocada.
Para os
soldados feridos levemente ou que vinham descansar da luta, havia sempre
sessões do Cine "Santa Helena" (que ficava no que é hoje o
"Calçadão Arthur Ballerini", no prédio do atual Banco Itaú) e
intercalavam-se filmes com cantos e recitativos, quando não faltava a
declamação de poesias, que exaltavam a liberdade e falavam do amor dos
paulistas pelo Brasil. Embora escrita posteriormente, a poesia "Nossa
Bandeira", de Guilherme de Almeida, mostra o "clima" de tais
reuniões.
Naturalmente, começaram a surgir problemas que a cidade precisou enfrentar e
um deles era a falta de pão, porque a Marinha de Guerra bloqueou os portos
paulistas e impedia o desembarque da farinha de trigo, mas as donas de casa
faziam bolinhos e mais bolinhos de fubá e ninguém passava fome. Outro
problema foi a falta de moeda corrente, solucionado com a emissão de bônus,
que era aceito livremente pelo comércio, pois todos sabiam que o Governo
Paulista tinha fundos para cobri-los, porque foi um sucesso a campanha do
"Ouro para São Paulo", em que todos doavam joias e alianças de
ouro, recebendo em troca alianças de ferro. Aqueles que não trocavam suas
anéis tinham vergonha de usá-los, para não serem vistos como aliados da
Ditadura e inimigos dos paulistas.
Bem perto
das três frentes de combate, a de Salto, em Queluz, a do Túnel, na
Mantiqueira e a de Cunha, na Serra do Mar, a cidade em pouco tempo
organizou-se para ajudar os combatentes. A cada passagem de trem de
voluntários, numerosas senhoras e meninos levavam até a estação os lanches
preparados na "Cozinha do Soldado Constitucionalista", que
funcionava no prédio do "Grupo Escolar Gabriel Prestes" e junto com
o lanche e café, maços de cigarros, revistas, agasalhos, medalhas e
santinhos. Para os
que estavam combatendo, escoteiros levavam embrulhos maiores até Silveiras e
Pinheiros, embarcados em caminhões cedidos. Chegava-se a ver ao longe a linha
dos soldados da Ditadura e ninguém se importava com inócuas rajadas de
metralhadoras que disparavam.
Com o
campo de pouso na Sementeira (o Horto Florestal de hoje), a cidade se tornou
uma base aérea e os vôos de nossos aviões eram comuns, assim como os da
Ditadura, e todos puderam apreciar os dois combates aéreos, quando os
"vermelhinhos" de Getúlio acabaram fugindo. As aulas de todas as
escolas foram suspensas e até o Ginásio São Joaquim teve que dispensar os
alunos internos, porque o prédio foi requisitado pelo comando revolucionário
para nele instalar um hospital de sangue, que não chegou a ser utilizado mas
foi pintada uma enorme cruz vermelha no telhado, para não ser bombardeado.
Pela
proximidade das frentes de combate, à noite podia-se ouvir o canhoneiro do
Túnel e mais para o fim os da Mantiqueira, até com o brilho das explosões.
Foram dois meses de exaltação cívica, em que Lorena mostrou-se uma
autêntica cidade paulista, até que se confirmaram as notícias de retirada
de nossos voluntários, que iriam ocupar as trincheiras abertas em Engenheiro
Neiva, onde diziam que iríamos resistir até o fim. Como a cidade seria
ocupada por tropas inimigas e o pessoal da Fábrica de Piquete iria para São
Paulo, houve um verdadeiro êxodo dos habitantes, deixando tudo para trás,
alojando-se onde foi possível, em cinemas, escolas, quartéis e casas de
parentes, desde Taubaté até São Paulo.
Meu pai
reuniu a família e fomos para a capital, mas só dormimos duas noites no
"Cine Babilônia", no Brás, pois foi alugada uma casinha no bairro
do Canindé, com dois quartos, onde se espremeram 12 pessoas. O moleque
gostou, porque convivia com a avó, os tios e os priminhos, além dos passeios
de bonde até o centro da cidade. Com o fim da revolução, a família
tratou de voltar logo para a nossa Lorena. A viagem de retorno foi
interminável, com o nosso trem parando em todas as estações para dar
passagem aos comboios militares. Em todas elas soldados do Exército, com o
incômodo capacete de cortiça, desconhecido por nós, o que lhes dava um
aspecto de tropa estrangeira, agravado pelo tom superior com que nos davam
ordens.
A família
vinha constrangida e tristonha, porque no mesmo carro viajavam oficiais e
sargentos da Ditadura. Todas as nossas atenções eram para o titio Dorico,
imobilizado em sua cadeira de rodas, embarcada a tanto custo, para a vovó e o
priminho que nascera em São Paulo. A tristeza era aumentada pelos escombros
que íamos vendo: estações bombardeadas, vagões tombados, pontes
restauradas às pressas para permitir o tráfego. E moscas por toda parte, em
enxames. Em Engenheiro Neiva meu irmão não se conteve, olhando as
trincheiras cavadas para resistir muito e falou alto: - "Ah! Se São
Paulo não fosse traído!" Um sargento, de lenço vermelho ao pescoço,
apontou-lhe uma varinha de bambu, gritando-lhe: - "Menino, contenha-se,
senão eu lhe prendo!"
Foi com
emoção que vimos de longe a torre de nossa Matriz, porque corria entre os
retirantes que uma bala de canhão a tinha destruído, por estar servindo de
posto de sinais para as nossas tropas. A plataforma da estação estava
atravancada de material de guerra e de soldados. O desembarque do meu tio
atraiu as atenções, uma ou outra cara conhecida.
Um mundo
estranho o de nossa cidade, no começo de outubro de 1932. Soldados por toda
parte: gaúchos do 9 Regimento de Infantaria de Pelotas, alagoanos,
pernambucanos, cearenses de não sei quantos batalhões improvisados nos
sertões do Nordeste e nas suas cidades litorâneas. Gente humilde, lembro-me
bem, meio desajeitados em fardas improvisadas. A cidade estava imunda, um
acampamento de conquistadores, com lojas arrombadas e meio incendiadas.
Não
pudemos entrar em nossa casa, na Rua Hepacaré. Um papel pregado na porta, com
o timbre de "Exército em Operações no Vale do Paraíba",
interditava nosso ingresso. Fomos todos para a casa de minha avó, na Rua da
Viscondessa. Lá, ao contrário, tudo escancarado. Na sala de entrada meio
metro de papéis forrava literalmente o chão: era a biblioteca de meu tio,
eram suas coleções de velhos jornais de Lorena, eram os jornais de São
Paulo do período da revolução, eram as proclamações da Ditadura, que os
aviões "vermelhinhos" lançavam e que eu conseguia apanhar para
ele, que os vândalos de uma nova invasão rasgaram por não compreenderem o
valor que já tinham e aumentaria com o tempo. Cobrindo este mundo de papel
rasgado, seu material de desenho, seus livros de engenharia, da dura ciência
que aprendera no seu leito de inválido, para bastar-se a si mesmo, sem
depender de ninguém. Manchas de cheiro de gasolina mostravam que a intenção
tinha sido pior e que a mão do incendiário fora detida no último instante e
que seria a do Tenente Sá Barros, regente da banda de música do 9 R.I., que
tinha servido em Lorena e ficara amigo de meu pai. Também
no salão da Corporação Musical "Mamede de Campos", centenas de
partituras tinham sido rasgadas, aquelas mesmo que meu pai conseguira com
tanto esforço em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Entretanto, um problema urgente logo se impôs: onde arranjar comida, se os
armazéns ainda não se tinham normalizado? E como comprá-la, se meu pai só
tinha o dinheiro da Revolução, os célebres "bônus", que São
Paulo resgatou depois até o último tostão? Um amigo, que permanecera na
cidade, ensinou o único jeito: pedir às tropas acantonadas no prédio do
"Gabriel Prestes". E lá fomos nós envergonhados até ele,
lembrando-nos da "Cozinha do Soldado Constitucionalista". No
pátio, soldados faziam churrasco. Meu amigo chegou-se a um, que carneava uma
rês, e pediu um pouco para uma família que tinha chegado de São Paulo. -
"Eu não devia dar para revoltosos, mas pega lá guri!" E lhe atirou
uns cinco quilos de carne boa, de gado paulista "requisitado".
Foi a primeira refeição da família na sua Lorena derrotada, vencida,
ocupada, mas como todos os paulistas, não convencida que a Ditadura tinha
razão."
* Prof. José
Geraldo Evangelista foi Geógrafo e Historiador, membro da Academia Paulista de
História, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do IEV -
Instituto de Estudos Valeparaibanos e sócio fundador da Sociedade dos Amigos
da Cultura de Lorena. Faleceu em 02/07/2003.
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